quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

ERRO MÉDICO E MÁ PRÁTICA (cont.)

4 - A "má prática"
"A Medicina é uma profissão a serviço do ser humano e da coletividade e deve ser exercida sem discriminação de qualquer natureza" (art. 1º/1988) e "o alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional" (art. 2º/1988).
Esta ênfase sobre o ser humano é importante porque chama atenção para o fato que, na visão do código atual, as responsabilidades do médico não se restringem apenas aos seus pacientes. O médico não é simplesmente aquele que trata doenças. É, também, aquele que promove a saúde dos indivíduos e da coletividade. É para isto que existe a medicina.
A má prática médica surge quando a ciência médica se desvia da sua finalidade humanitária e se usa a medicina para atentar contra a dignidade do ser humano. Confundir o erro médico, mesmo culposo, com a má prática, contribui para uma situação em que não se tomam providências para remediar abusos, porque não há mecanismos para distinguir claramente entre um erro honesto cometido por um profissional sério e dedicado e um uso da medicina para desrespeitar gravemente um ser humano, lesando-o nos seus direitos humanos fundamentais. O erro é mais uma expressão da fraqueza humana, enquanto a má prática é mais uma expressão da sua maldade.
Para facilitar nossa discussão podemos distinguir entre o uso da medicina para atentar contra a dignidade de qualquer ser humano e o uso da medicina para atentar contra a dignidade da pessoa que se tornou paciente do próprio médico.

4.1 - A "má prática" e os direitos humanos fundamentais
Se definirmos a má prática como o uso da medicina para atentar contra a dignidade do ser humano, um rápido levantamento nos revela que o código de 1988 prevê diversos delitos desta natureza. Alguns dos artigos são bastantes genéricos, como o artigo 47, que proíbe o médico de "discriminar o ser humano de qualquer forma ou sob qualquer pretexto"; o artigo 55 que veda ao médico "usar da profissão para corromper os costumes, cometer ou favorecer crime" e o artigo 85 que censura o médico que se utiliza "de sua posição hierárquica para impedir que seus subordinados atuem dentro dos princípios éticos", enquanto outros são bem específicos, como, por exemplo, os que tratam da tortura.
A preocupação com os direitos humanos e o uso da medicina para maltratar as pessoas é algo que se coloca, explicitamente, na tradição brasileira da ética médica codificada a partir do código de 1953. No Preâmbulo, o Código da Associação Médica Brasileira mostra esta sensibilidade quando se refere diretamente à "Declaração de Genebra": "O presente Código de Ética Profissional tem seus fundamentos no juramento solene que cada médico profere ao receber o grau; na `Declaração de Genebra' de 1948 adotada pela World Medical Association; no Código Internacional de Ética Médica; nos códigos nacionais existentes, nas leis e regulamentos vigentes no país e na tradição médica". As notícias das atividades dos médicos nazistas nos campos de concentração (5 e 6) tiveram seu impacto sobre a formulação do artigo 4º/1953 que insiste que é um dever fundamental do médico "guardar absoluto respeito pela vida humana, jamais usando seus conhecimentos técnicos ou científicos para o sofrimento ou extermínio do homem, nem podendo, seja qual for a circunstância, praticar algo que afete a saúde ou a resistência física ou mental de um ser humano, salvo quando se trate de indicações estritamente terapêuticas ou profiláticas em benefício do próprio paciente", uma provisão quase literalmente reiterada pelo Código de Ética Médica de 1965 no seu artigo 4º/1965. O princípio 9º/1984 está em direta continuidade com estes dois artigos anteriores quando afirma: "O médico, ainda que em caráter de pesquisa, guardará sempre absoluto respeito pela vida humana, desde a concepção até a morte, utilizando seus conhecimentos em benefício do paciente e jamais o fazendo para gerar sofrimento mental e físico ou extermínio do homem, nem para permitir ou encobrir tentativa contra sua dignidade ou integridade".
Se os excessos dos nazistas marcam a redação dos textos citados, os excessos dos militares brasileiros durante o período da ditadura, instaurada pelo golpe de 1964 (7), marcam a redação do código de 1988, com suas referências explícitas à tortura. Para o código, exemplos claros de má prática seriam qualquer médico "participar da prática de tortura ou outras formas de procedimento degradantes, desumanas ou cruéis, em relação à pessoa" (art. 50). Nestes casos, há um evidente uso da medicina para atentar contra a dignidade do ser humano (também de acordo com os artigos 20 e 21/1984 que, também, condenam explicitamente a prática de tortura).
O uso repressivo da medicina em procedimentos policiais para lesar a autonomia ou a dignidade do ser humano, reprovado pelo código atual, também pode ser caracterizado como má prática. O artigo 52/1988 rejeita firmemente o uso, por parte do médico, de "qualquer processo que possa alterar a personalidade ou consciência da pessoa, com a finalidade de diminuir sua resistência física ou mental em investigação policial ou de qualquer outra natureza".
Na mesma linha está a censura ao uso repressivo da medicina no caso da greve de fome, que se encontra na proibição do artigo 51/1988 de "alimentar compulsoriamente qualquer pessoa em greve de fome que for considerada capaz, física e mentalmente, de fazer juízo perfeito das possíveis conseqüências de sua atitude. Em tais casos, deve o médico fazê-la ciente das prováveis complicações do jejum prolongado e, na hipótese de perigo de vida iminente, tratá-la".
Coerente com sua postura de defesa do valor e da dignidade da vida humana, o código atual condena como má prática não somente a participação médica em tortura, mas, também, o envolvimento do médico, de qualquer forma, na execução da pena de morte. É-lhe vedado "fornecer meio, instrumento, substância, conhecimentos, ou participar, de qualquer maneira, na execução de pena de morte" (art. 54/1988). Mesmo se esta colaboração for permitida por lei, continuaria sendo um delito ético grave. Genival Veloso de França (8), no seu comentário sobre este artigo, tem a mesma opinião. Léo Meyer Coutinho defende a posição que, se essa colaboração na pena de morte for legal, não pode ser considerada antiética (9).
Além do uso repressivo da medicina, o código de 1988 prevê outras agressões contra a dignidade da pessoa, que não é propriamente um paciente, e que podem ser consideradas como má prática, principalmente na área do transplante de órgãos e na área da pesquisa.
Em relação ao transplante, seria um exemplo de má prática, e não apenas um erro culposo de imprudência, "retirar órgão de doador vivo quando interdito ou incapaz, mesmo com autorização de seu responsável legal" (art. 74/1988), como, também, seria "participar direta ou indiretamente da comercialização de órgãos ou tecidos humanos" (art. 75/1988). Em ambos os casos a medicina teria sido utilizada para atentar contra a dignidade do ser humano.
Na questão da pesquisa, os casos condenados como má prática seriam: "Participar de qualquer tipo de experiência no ser humano com fins bélicos, políticos, raciais ou eugênicos" (art. 122/1988) e "obter vantagens pessoais, ter qualquer interesse comercial ou renunciar à sua independênica profissional em relação a financiadores de pesquisa médica da qual participe" (art. 126/1988).
Claro, podem haver níveis de gravidade nesses diversos delitos. Aquilo que os une, porém, é a maldade no uso da medicina contra o ser humano, em lugar de usá-la para promover seu bem-estar.

4.2 - A "má prática" na relação médico-paciente
Um caso especialmente grave de má prática é o uso da medicina para atentar contra a dignidade da pessoa que se tornou paciente do próprio médico, devido à relação privilegiada que existe. O paciente deposita no médico uma enorme confiança e ele ou ela tem o direito de esperar que essa confiança não seja abusada.
As possíveis oportunidades para a má prática na relação médico-paciente são muitas, como deixa claro o código atual, quando veda ao médico "aproveitar-se de situações decorrentes da relação médico-paciente para obter vantagem física, emocional, financeira ou política" (art. 65/1988).
Uma das maneiras mais óbvias de explorar o paciente é financeiramente e parece que é a esse fato que o artigo 60/1988 está se referindo, de modo especial, quando proíbe ao médico "exagerar a gravidade do diagnóstico ou prognóstico, complicar a terapêutica, ou exceder-se no número de visitas, consultas ou quaisquer outros procedimentos médicos". Enganar o paciente para poder cobrar mais por consultas e tratamentos é, claramente, um caso de má prática.
Outra exploração do paciente que constitui má prática é o médico aproveitar-se dele para obter vantagem física e/ou emocional. É neste contexto que se pode comentar brevemente o artigo 63/1988 que veda ao médico "desrespeitar o pudor de qualquer pessoa sob seus cuidados profissionais". Nesta discussão é importante fazer algumas distinções, inclusive para poder salvaguardar a distinção entre delitos graves, menos graves e leves.
Para começar, pode-se afirmar que há uma maneira de desrespeitar o pudor do paciente que é mais fruto de negligência de que outra coisa e onde não há exploração física nem emocional. Estou me referindo às situações em certos hospitais que atendem um grande número de pacientes pobres ou que são hospitais-escolas onde, às vezes, o paciente é desnudado sem grande preocupação pela sua sensibilidade e tratado mais como objeto de que como pessoa. Esses casos, mesmo sendo mais exemplos de descuido que de maldade, devem ser remediados.
Há outras maneiras de desrespeitar o pudor do paciente, porém, que são mais graves e que constituem má prática e não negligência. São as situações que surgem quando o médico explora o relacionamento privilegiado que tem com seu paciente para ter relações sexuais, aproveitando-se dele ou dela física e emocionalmente (11). O código de 1988 não se preocupa com as atividades sexuais do médico na sua vida particular. Quando essas atividades, porém, entram na esfera do exercício da profissão em prejuízo ao paciente são reprovados como má prática.
Na relação médico-paciente, há uma forma de paternalismo que talvez não chegue a ser má prática, mas que, certamente, chega a ser autoritarismo. O código de 1988 manifesta seu repúdio a essa mentalidade quando veda ao médico "exercer sua autoridade de maneira a limitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a sua pessoa ou seu bem-estar" (art. 48/1988). Esse autoritarismo, porém, torna-se má prática quando o médico "desrespeitar o interesse e a integridade do paciente, ao exercer a profissão em qualquer instituição na qual o mesmo esteja recolhido independentemente da própria vontade" (art. 53/1988). Mesmo quando o autoritarismo for de inspiração benigna, constitui-se má prática o médico tomar decisões que são da alçada do paciente como nos casos previstos pelo artigo 67/1988 que proíbe ao médico "desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre método contraceptivo ou conceptivo, devendo o médico sempre esclarecer sobre a indicação, a segurança, a reversibilidade e o risco de cada método" e "praticar fecundação artificial sem que os participantes estejam de inteiro acordo e devidamente esclarecidos sobre o procedimento" (art. 68/1988).
Continuando nossa reflexão sobre a má prática, uma área em que precisamos abrir um debate mais amplo é a área da relação entre o jurídico e o ético. O código veda ao médico "praticar ou indicar atos médicos desnecessários ou proibidos pela legislação do País" (art. 42/1988) e "descumprir legislação específica nos casos de transplantes de órgãos ou tecidos, esterilização, fecundação artificial e abortamento" (art.43). No caso, por exemplo, em que a lei do país está desatualizada em relação aos progressos médicos e o descumprimento da lei favorece o paciente, será que se pode argumentar que um ato pode ser juridicamente criminoso sem ser má prática ética, já que não há atentado por parte do médico à dignidade do ser humano? Ou, será que um ato se caracteriza como má prática pelo simples fato de ser ilegal? Essa discussão terá relevância especial para o debate sobre questões como transplantes de órgão ou tecidos, esterilização, fecundação artificial e abortamento. Nessa discussão, é interessante recordar as provisões do artigo 28/1988 que garante ao médico o direito de "recusar a realização de atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência".
Um dos direitos fundamentais do paciente, garantido pelo código de 1988, é o direito de não ser morto pelo seu médico, mesmo sendo paciente terminal.
Em relação à questão da quebra do sigilo médico, pode-se caracterizá-la como um erro de imprudência ou de negligência, e como má prática, fruto de uma decisão proposital de prejudicar o paciente em benefício de si mesmo ou de terceiros (a questão do sigilo médico é regulamentada no código pelos artigos 11 e 102-109/1988). São as circunstâncias e a motivação que determinarão a gravidade do delito.

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