terça-feira, 8 de dezembro de 2009

ERRO MÉDICO E MÁ PRÁTICA (cont.)

3 - Responsável e culpado
O problema maior, do ponto de vista da valoração ética do erro médico, surge no caso em que o médico é responsável e culpado pelos danos causados. O texto do Código de Ética Médica que mais procura explicitar este caso é o artigo 29/1988, que veda ao médico "praticar atos profissionais danosos ao paciente, que possam ser caracterizados como imperícia, imprudência ou negligência". No código, a presença de um destes fatores, imperícia, imprudência ou negligência, permite a imputação não apenas de responsabilidade mas, também, de culpabilidade.

3.1 - Imperícia
O código de 1988 se preocupa com a imperícia em duas frentes. A primeira tem a ver com a situação em que o médico dá cobertura a pessoas não habilitadas para exercer a medicina. Nesse caso, é vedado ao médico "delegar a outros profissionais atos ou atribuições exclusivos da profissão médica" (art. 30/1988) e "acumpliciar-se com os que exercem ilegalmente a Medicina, ou com profissionais ou instituições médicas que pratiquem atos ilícitos" (art. 38/1988).
A segunda frente é mais complexa e trata da imperícia do próprio médico. Léo Meyer Coutinho (2) sustenta que, muitas vezes, é difícil distinguir entre imperícia e imprudência. Genival Veloso de França vai mais longe e diz que não se pode atribuir imperícia a um médico devidamente diplomado e que o erro será sempre de imprudência ou negligência (3,4).

3.2 - Imprudência
Muitas das situações previstas no código e que acarretam danos para terceiros são fruto de erro médico provocado por imprudência. São situações em que o médico age sem a devida cautela, expondo o paciente a riscos desnecessários e expondo-se mesmo a riscos de ordem jurídica (criminal e/ou civilmente). A imprudência é, normalmente, algo que se faz, enquanto a negligência é caracterizada por algo que se deixa de fazer, mas as duas são irmãs gêmeas que andam muito juntas.
Exemplos simples de imprudência se encontram no artigo 62/1988 com sua proibição de "prescrever tratamento ou outros procedimentos sem exame direto do paciente, salvo em casos de urgência e impossibilidade comprovada de realizá-lo, devendo, nesse caso, fazê-lo imediatamente cessado o impedimento" e no artigo 39/1988 que veda ao médico: "Receitar ou atestar de forma secreta ou ilegível, assim como assinar em branco folhas de receituários, laudos, atestados ou quaisquer outros documentos".
Em outros casos, um pouco mais complicados, podemos dizer que seria, no mínimo, imprudente o médico "efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente perigo de vida" (art. 46/1988); "desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida" (art. 56/1988); "opor-se à realização de conferência médica solicitada pelo paciente ou seu responsável legal" (art. 64/1988); "participar do processo de diagnóstico da morte ou da decisão de suspensão dos meios artificiais de prolongamento da vida de possível doador, quando pertencente à equipe de transplante" (art. 72/1988); "deixar, em caso de transplante, de explicar ao doador ou seu responsável legal, e ao receptor, ou seu responsável legal, em termos compreensíveis, os riscos de exames, cirurgias ou outros procedimentos" (art. 73/1988). Dependendo do peso que se dá à autonomia do paciente, pode-se argumentar que o delito ético aqui é mais grave que mera imprudência e que já constitui, na medida em que é um atentado contra a dignidade do ser humano, um caso de má prática.
Nessa mesma linha de pensamento, na área de pesquisa, seria pelo menos uma imprudência: "Realizar pesquisa em ser humano, sem que este tenha dado consentimento por escrito, após devidamente esclarecido, sobre a natureza e conseqüências da pesquisa" (art. 123/1988) e "usar experimentalmente qualquer tipo de terapêutica ainda não liberada para uso no País, sem a devida autorização dos órgãos competentes e sem consentimento do paciente ou de seu responsável legal, devidamente informados da situação e das possíveis conseqüências" (art. 124/1988). A imprudência aqui consiste, de um lado, em o médico assumir sozinho responsabilidade por riscos que devem ser partilhados pelo paciente e pela sociedade e, do outro, em expor o paciente a danos que possivelmente possam ser evitados devido aos maiores cuidados que uma fiscalização criteriosa sempre inspira.
Continuando na área de pesquisa, pode-se caracterizar como imprudência os seguintes casos: "Promover pesquisa na comunidade sem o conhecimento dessa coletividade e sem que o objetivo seja a proteção da saúde pública, respeitadas as características locais" (art. 125/1988); "realizar pesquisa médica em ser humano sem submeter o protocolo a aprovação e acompanhamento de comissão isenta de qualquer dependência em relação ao pesquisador" (art. 127/1988); "realizar pesquisa médica em voluntários, sadios ou não, que tenham direta ou indiretamente dependência ou subordinação relativamente ao pesquisador" (art. 128/1988); "executar ou participar de pesquisa médica em que haja necessidade de suspender ou deixar de usar terapêutica consagrada e, com isso, prejudicar o paciente" (art. 129/1988) e "realizar experiências com novos tratamentos clínicos ou cirúrgicos em pacientes com afecção incurável ou terminal sem que haja esperança razoável de utilidade para o mesmo, não lhe impondo sofrimentos adicionais" (art. 130/1988).
Nestes casos, a imprudência consiste em não adotar as salvaguardas estabelecidas pela profissão médica para a proteção do próprio médico, do paciente e da sociedade, mesmo não havendo danos maiores em cada caso concreto. Estas imprudências facilmente se transformam em má prática quando levam o médico a desprezar a dignidade do ser humano e a provocar-lhe danos graves. Pode-se verificar isto claramente no caso de experiências em pacientes terminais citado acima. Na situação prevista no art. 130/1988, o delito inclui e vai além da imprudência já que procedimentos experimentais em pacientes terminais, sem esperança razoável de utilidade para os mesmos e que provocam sofrimentos adicionais, são exemplos de falta de respeito pela dignidade do ser humano e, conseqüentemente, exemplos de má prática médica.
3.3 - Negligência
Segundo Genival Veloso de França, "a negligência caracteriza-se pela inação, indolência, inércia, passividade. É a falta de observação aos deveres que as circunstâncias exigem. É um ato omissivo" (4). Casos de negligência que provocam danos ao paciente podem ser fruto de preguiça ou desinteresse por parte do médico, mas, também, podem ser fruto de cansaço e sobrecarga de serviços devido às condições de trabalho impostas a muitos médicos em hospitais e postos de saúde.
As formas de negligência mais graves que se encontram no código de 1988 são a omissão de tratamento e o abandono do paciente.
O Código de Ética Médica (1988) deixa claro que o médico tem, até certo ponto, o direito de escolher seus pacientes e ele não é obrigado a atender qualquer um, indiscriminadamente: "O médico deve exercer a profissão com ampla autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços profissionais a quem ele não deseje" (art. 7º/1988). Este direito, porém, não é absoluto e é limitado pela cláusula, no mesmo artigo, "salvo na ausência de outro médico, em casos de urgência, ou quando sua negativa possa trazer danos irreversíveis ao paciente". Para não deixar margem a dúvidas, o código reitera sua posição em relação a esta questão no artigo 58/1988 quando veda ao médico "deixar de atender paciente que procure seus cuidados profissionais em caso de urgência, quando não haja outro médico ou serviço médico em condições de fazê-lo". Neste ponto o código é muito claro: na ausência de outro, o médico que se omite em casos de urgência ou que, pela inércia, causa danos irreversíveis ao paciente, é responsável por uma negligência que constitui um erro culposo.
Esta postura é reforçada no artigo 35/1988, que veda ao médico "deixar de atender em setores de urgência e emergência, quando for de sua obrigação fazê-lo, colocando em risco a vida de pacientes, mesmo respaldado por decisão majoritária da categoria". Este artigo é importante porque caracteriza claramente como omissão de socorro o fato do plantonista, mesmo estando de greve, ausentar-se de setores de urgência e emergência, se isso puser em risco a vida de pacientes.
Mais abrangentes ainda são os artigos que caracterizam como erro culposo a negligência pela qual o médico deixa "de comparecer a plantão em horário preestabelecido ..., salvo por motivo de força maior" (art. 37/1988) ou deixa "de utilizar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento a seu alcance em favor do paciente" (art. 57/1988).
Outras negligências reprovadas pelo código são: "Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta ao mesmo possa provocar-lhe dano, devendo, nesse caso, a comunicação ser feita ao seu responsável legal" (art. 59/1988); "deixar de fornecer a outro médico informações sobre o quadro clínico de paciente, desde que autorizado por este ou seu responsável legal" (art. 83/1988) e "deixar de informar ao substituto o quadro clínico dos pacientes sob sua responsabilidade, ao ser substituído no final do turno de trabalho" (art. 84/1988).
Ao lado das situações de negligência caracterizadas por omissão, o código prevê situações de negligência caracterizadas como abandono do paciente.
O artigo 37/1988, por exemplo, proíbe o médico de abandonar o plantão, "salvo por motivo de força maior", enquanto o artigo 36/1988 proíbe-o de "afastar-se de suas atividades profissionais, mesmo temporariamente, sem deixar outro médico encarregado do atendimento de seus pacientes em estado grave".
A preocupação do código com esta problemática do abandono do paciente recebe um tratamento especial no artigo 61/1988. A posição fundamental assumida é que é vedado ao médico "abandonar paciente sob seus cuidados" e as exceções a esta proibição são regulamentadas por dois parágrafos explicativos. O § 1º estabelece o procedimento a seguir quando o médico considera que não há mais condições para continuar dando assistência: "Ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o bom relacionamento com o paciente ou o pleno desempenho profissional, o médico tem o direito de renunciar ao atendimento, desde que comunique previamente ao paciente ou seu responsável legal, assegurando-se da continuidade dos cuidados e fornecendo todas as informações necessárias ao médico que lhe suceder". O § 2º insiste que o fato de o paciente ser portador de moléstia crônica ou incurável não é motivo suficiente para abandoná-lo, "salvo por justa causa, comunicada ao paciente ou a seus familiares, o médico não pode abandonar o paciente por ser este portador de moléstia crônica ou incurável, mas deve continuar a assisti-lo ainda que apenas para mitigar o sofrimento físico ou psíquico". É interessante notar que nos códigos de 1929 e de 1931 o abandono do paciente crônico ou terminal é categoricamente proibido. De acordo com o artigo 8º/1929: "O médico não deverá abandonar nunca os caso chronicos ou incuraveis e nos difficeis e prolongados será conveniente e ainda necessário provocar conferencias com outros collegas" e o artigo 8º/1931: "Não deve o medico abandonar nunca os caso cronicos ou incuraveis; e, nos dificeis e prolongados, será conveniente e, quiçá, necessario provocar conferencias com outros colegas".

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